O
gênero (literário, em seu início) de ficção científica originou-se na Europa do
século XIX, na publicação “Amazing Stories”. Entre enredos fantásticos, típicos
da Golden Age, passando pelas
populares space operas e pelas
narrativas de teor contestador do movimento cyberpunk,
ganhou outros mercados e foi expandindo, gradativamente, seus tentáculos a
diferentes artes, como o cinema e, mais tarde, a televisão.
É
possível afirmarmos que, aqui no Brasil, a ficção científica não
encontrou um terreno fértil ao seu desenvolvimento e amadurecimento – se
compararmos com outros países que possuem o gênero como um forte expoente de
suas obras, como os Estados Unidos da América. Com o aparecimento do
videocassete no país, no início dos anos 1980, e pela distribuição de títulos
fílmicos em fita ser muito cara devido aos altos impostos cobrados pelo
governo, a pirataria acabou tornando-se uma opção a quem não queria ou não
podia desembolsar tanto para desfrutar da incrível experiência de se assistir
cinema em casa. Este fator ajudou ao estabelecimento (ou ratificação) de um
certo favoritismo em relação às caprichadas e onerosas produções hollywoodianas, repletas de efeitos
especiais de encher os olhos.
Percebendo
a carência de obras nacionais nas estantes das videolocadoras da época, órgãos
responsáveis pelo setor do audiovisual decidiram se organizar e cobrar destes
estabelecimentos uma reserva de 25% do mercado de fitas para os filmes
brasileiros. No entanto, as multinacionais eram contra a medida protecionista,
o que acabou as afastando da distribuição em vídeo no Brasil. Mais para frente,
acordos entre distribuidoras e, a partir do mandato do presidente Collor, a
extinção das leis de obrigatoriedade da reserva nacional acabaram por
privilegiar as companhias de fora e a reserva de mercado voltado à produção
nacional defasou-se.
Melhor ficção científica nacional que você respeita <3 |
A partir do panorama traçado acima, foi apenas questão de tempo para que
o audiovisual brasileiro (principalmente, o voltado à indústria cinematográfica)
fosse, gradativamente, sendo esquecido pelo público. O cinema brasileiro,
inclusive, tornou-se um gênero per si,
o que resultou na limitação de apenas uma prateleira para disponibilizar de
todo o acervo produzido por aqui. Produções voltadas à temática do horror,
fantasia, ou aos contextos infanto-juvenis e aos relacionados à ficção
científica acabaram reduzidos a um rótulo único e que não os divulgava da forma
como deveriam ser publicizados. Acabaram, portanto, sendo distinguidos de
gêneros em comum e perderam seu potencial atrativo perante à audiência.
A
níveis de contextualização, o curta “Duelo de Cozinheiras” (1908), dirigido por
Antônio Leal, constituiu-se como o primeiro experimento em ficção científica no
Brasil. Após isso, fizeram sucesso também a chanchada musical “Carnaval em
Marte” (1954), de Watson Macedo e a comédia erótica “O inseto do amor” (1980),
de Fauzi Mansur. Recentemente, chegava aos cinemas “O homem do futuro” (2011),
de Cláudio Torres. Embora contivesse elementos pertencentes a experiências que
dialoguem com técnicas baseadas no cientificismo, o filme veio respaldado,
também, pela etiqueta de ‘comédia romântica’, visando a atrair um público maior
e mais heterogêneo do que apenas atingir a um nicho.
Pode-se
perceber, a partir do exemplo acima, que ainda paira sobre os estúdios
nacionais um certo temor em relação à vestir a camisa, por completo, do estilo
de ficção científica em suas obras, o que acaba por cercear os temas que serão
abordados em obras posteriores; limitando-os às já conhecidas e esteriotipadas
“comédias de situação”.
Mas
e o que dizer da televisão aberta brasileira e de sua ampla produção e
transmissão de produtos diante deste cenário? A quantas anda as tentativas de
impressionar o público com narrativas diferentes em proposta e concepção e que
os cative?
Nestes
últimos seis anos, investidas não faltaram. Na maior emissora do país e
referência em produção teledramatúrgica, a Rede Globo, três novelas do horário
das 19h tentaram emplacar histórias abordando tecnologias imaginárias e
contando com um pano de fundo tecnocientífico. Foram elas: “Tempos Modernos”
(2010), de Bosco Brasil; “Morde & Assopra” (2011), de Walcyr Carrasco e
“Além do Horizonte” (2014), de Marcos Bernstein e Carlos Gregório. Deste trio,
apenas “Morde & Assopra” recebeu considerável prestígio em números de
audiência, enquanto que as outras duas tiveram que amargurar a dura rejeição do
povo e viram suas tramas, pouco a pouco, irem ganhando tons e texturas mais
verossímeis e deixando as inovadoras interações homem-máquina de escanteio.
Naomi, a robozinha porraloka do rolê |
Já
em outro canal, a Rede Record, o panorama foi diferente. No ano de 2007,
estreava uma das telenovelas de maior audiência de todos os tempos da emissora:
“Caminhos do Coração”. Possuía como proposta a ousada prerrogativa de mesclar
dois gêneros um tanto quanto complexos em gramática: o folhetim melodramático e
a ficção científica. A inovação por parte do autor da trama, Tiago Santiago,
causou surpresa e apreensão em relação aos críticos televisivos e aos
telespectadores mais tradicionais, que não sabiam o que esperar de uma obra tão
diferente (e que, ao decorrer da estória, tornou-se cada vez mais exótica)
daquilo que eles já estavam acostumados a assistir e a avaliar; daquilo que
eles já estavam acomodados a comentar e a compreender em signos.
“Caminhos
do Coração” reinventou a forma de se produzir e de se consumir narrativas
folhetinescas, apresentando à população uma trama totalmente original, repleta
de seres geneticamente modificados e de criaturas bestiais; como dinossauros,
sapos gigantes, lobisomens e ogros, por exemplo. O enredo fez tanto sucesso que
foi a primeira novela da emissora a liderar na média geral televisiva do IBOPE
naquele dia, uma quarta-feira. Além disto, chegou a atrapalhar a hegemonia
global em seu horário de exibição, fazendo a aposta da platinada na época, “A
Favorita”, ter de trabalhar com afinco para reconquistar a audiência outrora
perdida. Por estes e outros motivos, a novela se estendeu em mais outras duas
temporadas (“Os Mutantes – Caminhos do Coração” e “Mutantes – Promessas de
Amor”), permanecendo no ar até o segundo semestre de 2009 e gerando bastante
repercussão.
A
narrativa da trilogia “Caminhos do Coração
Na
primeira fase da trama, acompanhamos o desenvolvimento de dois enredos
distintos, mas que se cruzam a partir do desenrolar dos acontecimentos: o da
acrobata Maria (Bianca Rinaldi) e o do polical federal Marcelo Montenegro
(Leonardo Vieira). Maria é filha adotiva de Pepe (Perfeito Fortuna) e Ana Luz
(Fafá de Belém) - donos do circo Don Pepe - e, assim que descobre que não é
descendente biológica do casal, acaba se envolvendo em uma grande confusão:
torna-se a principal suspeita de ter assassinado um dos maiores empresários
clínicos do país, o Dr. Sócrates Mayer (Walmor Chagas). Sócrates era dono da
Progênese, um instituto médico de prestígio e que se localizava no Guarujá, no
litoral de São Paulo. A moça estava trabalhando de ‘estátua viva’ durante um
evento da famosa companhia e acaba sendo sedada e levada desacordada ao local
do crime. Encontram-na com uma seringa em sua mão e ao lado do cadáver, fazendo
a mocinha responder, injustamente, por algo que não cometeu.
Me ferrei, vou ficar quietinha aqui de estátua |
Paralelamente
a isso, somos também apresentados aos dramas de Marcelo, policial que presencia
a morte de sua esposa, Mabel (Sabrina Greve) e que, ao investigar o caso
procurando por explicações, se depara com o Projeto DNA - desenvolvido pela já
supracitada Progênese. Este desenvolvimento de pesquisa científica envolve a
criação dos famigerados mutantes (humanos geneticamente modificados), que
passam a ganhar, de forma procedural, mais espaço e narrativas próprias ao
longo da novela.
Uma saudade: caracterização dos personagens / efeitos especiais no talo <3 |
Em
meio a toda esta rocambolesca narrativa, o oficial tem ainda de lidar com os
estranhos fenômenos que estão acontecendo com a filha, Tatiana (Letícia Medina).
Ao ficar nervosa, a menina consegue fazer com que os objetos que a cercam se
locomovam e até se estilhacem. Maria também vê sua vida ficando ainda mais
conturbada quando descobre que, na verdade, o homem que ela está sendo acusado
de ter matado é seu pai; sendo ela herdeira de uma recheada fortuna.
A
grande responsável por dar início ao tal Projeto DNA é a gananciosa Dra. Júlia
(Ítala Nandi), que há 30 anos manipula o material genético humano. Há dois
tipos de mutantes na obra: os “superdotados”, possuindo a glândula pineal do
cérebro alterada e capacitando a estes indivíduos os poderes de telepatia,
superforça e hipnose, por exemplo; e os “quiméricos”, que possuem traços
genéticos de animais em seus códigos genéticos. Estes humanos,
consequentemente, possuem as respectivas características destas espécies, como
cobra, águia, macaco, aranha, lobo, pinguim e formiga, por exemplo.
A saudosa tribo dos Homens-Formiga |
Logo
depois de sua prisão, Maria passa a ser ajudada por Marcelo (que se compadece
com a história da moça), e os dois acabam se apaixonando. No entanto, eis que o
policial decide ajudar a artista circense a escapar da cadeia, tornando-se,
também, um fugitivo da lei. Mais tarde, algumas personagens começaram a
descobrir quem era o responsável por detrás das mortes de Sócrates Mayer e de
Mabel, a esposa de Marcelo, e acabam sendo assassinados pelo serial killer Eric Fusily (Tuca Andrada).
No
último capítulo da primeira temporada, descobre-se que quem contratou o matador
de aluguel foi ninguém menos que a própria Dra. Júlia, que também foi a grande responsável
pelo sequestro de Maria ainda bebê, pelo intermédio do advogado César Rubicão
(Cássio Scapin). Com receio que Sócrates Mayer deixasse sua fortuna à herdeira,
e prevendo que Maria fosse descobrir o que acontecia no subsolo da Ilha do
Arraial (onde Júlia possuía um laboratório secreto), temendo que cancelasse seu
Projeto DNA e suas experiências, a médica decide arquitetar todos estes crimes;
colocando Maria, inclusive, na linha de frente da morte do empresário, visando
a encobrir sua participação também neste grave delito.
Com
estas revelações assustadoras, chegamos à segunda temporada do folhetim. Em seu
início, como pudemos observar, a narrativa possuía, em sua maioria, traços
latentes da matriz folhetinesca, contando com tramas paralelas abordado o drama
de pessoas que se descobriam com dons especiais ou eram vítimas de experimentos
genéticos. No entanto, com a emissora observando o expressivo sucesso que os
personagens mutantes estavam fazendo, principalmente em relação ao público
jovem, seus executivos (juntamente com o autor e o diretor da obra) decidiram
não apenas esticar e presentear “Caminhos do Coração” com mais uma temporada,
como também nomear esta nova fase do folhetim como “Os Mutantes – Caminhos do
Coração”; conferindo a estes seres especiais um lugar de fala mais ativo e
centrado em primeiro plano. Neste ponto, as histórias de amor, drama e vingança
foram postas em “banho Maria”, enquanto a típica batalha entre as forças do bem
e do mal capitanearam o enredo principal da história.
A
temida Dra. Júlia, tendo seus crimes revelados e passando a ser perseguida,
decide mudar de aparência. Ela toma um elixir da juventude e rejuvenesce 30
anos, assumindo a identidade de Juli di Trevi (Babi Xavier). Continua a
comandar suas experiências genéticas nos confins da Ilha dos Mutantes, desta
vez com o auxílio de seu amante, Taveira (Gabriel Braga Nunes). Enquanto isto,
as mutações passam a se espalhar, rapidamente, por entre a sociedade,
transformando cidadãos comuns em felinos, serpentes, vampiros e afins. A cidade
de São Paulo, palco desta terrível infestação, entra em estado de alerta e
torna-se perigosa para se habitar. As pessoas passam a temer e a caçar a todos
os mutantes, inclusive os do bem - os que, no caso, não apresentam este lado bestial.
Ataque de dinossauros no Ibirapuera |
Com
vários casos de ataques e, até mesmo, abduções por naves que cruzam os céus da
cidade, eis que entra em cena a DEPECOM (Departamento de Pesquisa e Controle
dos Mutantes), órgão criado pelo governo para catalogar, pesquisar e controlar
todos os mutantes criados seja pela agora Dra. Juli di Trevi, seja pela
disseminação do ‘vírus mutante’ na capital paulistana.
Descobre-se,
logo na primeira semana da segunda parte do enredo, que Maria possui uma irmã
gêmea, Samira. Ela foi criada em cativeiro desde seu nascimento, sendo mantida
escondida, amordaçada e acorrentada por Juli. As irmãs são as mutantes mais
poderosas já existentes, pois conseguem absorver os poderes de todos os outros
seres especiais, dependendo de seu caráter. Elas serão as grandes responsáveis
por chefiarem as chamadas Liga do Bem e Liga do Mal, que movimentaram e deram
um certo ar de thriller à trama ao
longo de seus dez meses de exibição.
No
final da história, Samira acaba engravidando do irmão de Marcelo, o agente da
DEPECOM Beto (Felipe Folgosi) e o instinto maternal toma conta de seu corpo,
mesmo contra sua vontade. Ela faz as pazes com irmã e acaba morrendo ao dar a
luz à sua filha, que passa a ser criada por Maria e Marcelo. O casal, cansado
da perseguição que estava sofrendo, decide fugir para um lugar mais tranquilo
de se viver e, por lá, decidem reconstruir sua vida ao lado de seus bebês e de
Tatiana, a filha mais velha de Marcelo.
A
terceira e última temporada da saga de “Caminhos do Coração” recebeu o título
de “Promessas de Amor”. O objetivo de Tiago Santiago aqui era aproveitar a boa
repercussão que a novela estava tendo em meio ao seu público-alvo, o
infanto-juvenil, e transferi-lo também e, mais uma vez, a um segmento mais
adulto, mais maduro. Para tal, ele transferiu a narrativa fantástica à
subalternidade e colocou em voga tramas mais realistas; desta vez, com um novo
casal principal: Amadeus (Luciano Szafir) e Sofia (Renata Domingues).
Sem gracinhas e insossos |
A novela deixa de ser ambientada em São Paulo e passa a desenrolar suas
peripécias no Rio de Janeiro. Somos apresentados à conturbada relação de Sofia
com seu ex-namorado, Juan Ferraz (Vinicius Zinn). Reagindo a um violento ataque
do rapaz, ele acaba morrendo em uma das estradas de Petrópolis e o crime é
testemunhado pelo cavalariço Amadeus, que se apaixona por Sofia e decide
ajudá-la, compadecendo-se de sua história.
Enquanto
isto, os mutantes têm de viver com seus poderes em segredo, agora que o governo
aprovou a chamada “Lei Antimutante” no país. Eles se escondem na escola onde estudam
e os outros alunos nem sequer suspeitam que possuam habilidades especiais.
Eu suspeito |
Devido
à baixa audiência que esta temporada da novela alcançou, não demorou muito para
que a alta cúpula da emissora optasse por trazer os elementos do realismo
fantástico e da ficção científica de volta à trama, situando-os em lugar de
destaque. Para tal, a abertura da atração foi alterada e seu nome foi mudado
para “Mutantes – Promessas de Amor”. No entanto, a repercussão por entre o
público já havia sido perdida, e a Record teve que adiantar o desfecho da
telenovela (que durou, apenas, cinco meses no ar).
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